Projeto é de 2002 e ressurge em cenário de consenso sobre necessidade de invalidação da norma autoritária
Com previsão de votação para a próxima quarta-feira (5) no plenário da Câmara dos Deputados, a proposta que revoga a Lei de Segurança Nacional (LSN) deverá ser colocada em pauta para apreciação dos 513 parlamentares da Casa ainda sob faíscas. O texto tramita como Projeto de Lei (PL) 2.462/1991 e em bloco com mais 14 PLs de teor semelhante.
Em linhas gerais, a medida substitui a lei de 1983 (LSN) por uma nova norma que contém a descrição de 14 crimes contra o Estado Democrático de Direito, excluindo os artigos da LSN que criminalizam críticas a autoridades federais que se dão no escopo da Liberdade de Expressão, garantida pela Constituição Federal.
Há quase um consenso, na Casa, sobre a necessidade de se invalidar a LSN, que foi cunhada nos tempos da Ditadura Militar e desde então serviu de instrumento de repressão em diferentes contextos.
“A questão é o que se coloca no lugar dela. Se nós vamos manter ainda subterfúgios que possam também reprimir movimentos e enquadrar pessoas que estejam lutando por liberdades democráticas, isso não faz nenhum sentido”, pontua o líder da bancada do PT, Bohn Gass (RS), ao resumir o ponto que hoje divide os parlamentares da Casa.
No curso das polêmicas que dão o tom do debate, o relatório que irá à votação, produzido pela deputada Margarete Coelho (PP-PI), já recebeu mais de dez versões diferentes. A parlamentar vem conversando com os grupos de interesse envolvidos com a pauta e por isso fez diversas alterações no parecer ao longo das últimas semanas, a partir das reivindicações do campo progressista.
O texto, no entanto, continua recebendo críticas. Uma delas diz respeito à base jurídica em que está fundada a proposta, o Código Penal. Em seu parecer, a relatora defende que “a codificação apresenta mais benefícios”.
Já especialistas do campo democrático entendem que a legislação penal não seria o instrumento mais apropriado para tratar de normas relacionadas à proteção do Estado de Direito, como era o ponto de partida do PL.
“O que a história mostra no Brasil e no mundo é que o sistema penal é extremamente seletivo. Ele foca na população pobre, negra, LGBT, nos povos indígenas. O uso dele é direcionado para os grupos historicamente excluídos da sociedade. Então, colocá-lo como principal mecanismo de defesa do Estado democrático é ignorar que é um sistema que serve, na verdade, pra aprofundar desigualdades e exclusões sociais”, analisa a coordenadora do Programa de Espaço Cívico da ONG Artigo 19, Raísa Cetra.
A especialista acrescenta que legislações penais e afins demandam precisão nas condutas criminosas tipificadas para se evitar o uso de tais textos como aparato de criminalização e uso ideológico. Na avaliação da Artigo 19, o PL em questão carece desse resguardo por conter tipos considerados muito abertos e que poderiam se tornar instrumento de perseguição política.
É o caso, por exemplo, do crime de sabotagem, definido pelo texto como o ato de “destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático e de Direito”.
As últimas especificidades foram incluídas pela relatora após debate com especialistas que pediram maior detalhamento para a conduta. No entanto, Raísa Cetra entende que a atual descrição, bem como os conceitos que o PL dá para crimes como “insurreição” e “conspiração”, demanda que a conceituação seja ainda mais minuciosa, para que não possa ser utilizada como arma política para punir adversários de governos de plantão.
“Esses tipos reeditam artigos concretos da Lei de Segurança Nacional e colocam em risco a atuação política e ferramentas históricas de movimentos populares, como fechar uma rodovia ou a entrada de um prédio público pra fazer protesto. Quem garante pra gente que os usos abusivos da Lei de Segurança Nacional que temos hoje não irão se repetir com essa nova lei?”, questiona a especialista da entidade.
Cenário
O PL 2.462/1991 tem como autor original o jurista Hélio Bicudo. O texto voltou à tona neste semestre legislativo após diferentes casos recentes de utilização da norma, em situações em que foi aplicada contra opositores da gestão Bolsonaro.
De um lado, o dispositivo preocupa atores políticos conservadores incomodados com a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no processo que levou à prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), enquadrado na lei.
De outro, inquieta entidades e especialistas de tendência garantista porque foi editado na época da Ditadura Militar e é visto como herança do autoritarismo que marcou o período. O próprio STF tem críticas à lei. O ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, já chegou a se referir ao texto como “fóssil normativo”.
No campo democrático, diferentes pessoas viraram alvo recente do governo Bolsonaro no uso da lei. O líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) Guilherme Boulos e o youtuber Felipe Neto, por exemplo, estão entre eles.
O conjunto de prisões recentes relacionadas ao tema esteve entre os fatores que concorreram para que o PL tivesse tramitação acelerada na Câmara. Também contaram as diferentes ações judiciais que questionam a Lei de Segurança Nacional no STF e a tentativa do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de fazer com que o Congresso seja o protagonista desse debate no lugar do Supremo, já que há consenso legislativo sobre a necessidade de se derrubar a norma da época da Ditadura.
Mas a tramitação célere da pauta é outro ponto de preocupação de integrantes da oposição. De modo geral, o grupo entende que o tema é complexo e demanda mais tempo de análise e debate.
“Uma matéria que envolve questões sobre liberdades democráticas, direito de manifestação e tantas questões caras pra nós, ainda mais neste tempo, é uma matéria que precisava tramitar com um pouco mais de calma, a partir de um processo de escuta de juristas, de movimentos sociais, de entidades”, avalia, por exemplo, a líder do Psol, Talíria Petrone (RJ).
(Cristiane Sampaio/BF)
Marcello Casal Jr./AB