Projeto desafia lógica dominada por farmacêuticas e filantropos por trás da fabricação e (pouca) distribuição de vacinas
O acesso às vacinas durante a pandemia de covid-19 ainda se revela um desafio. 60.8% da população mundial foi vacinada, quase 10 bilhões de doses aplicadas. Ainda assim, nos países mais pobres, apenas 9,8% da população foi imunizada.
Em um novo apelo global, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou um pedido de suporte para arrecadar US$ 5,2 bilhões (cerca de R$ 28 bilhões) para o fundo do consórcio Covax, criado para distribuir vacinas contra a SARS-CoV-2 a países necessitados. Estimam que, assim, um fundo de 600 milhões de doses poderia ser construído, além de garantir recursos para o transporte dos imunizantes e outros itens como a aquisição de seringas.
Mais uma vez, a expectativa para o sucesso da Covax está longe do objetivo. Entre os países comprometidos, as doações para o fundo somam apenas US$ 44,8 milhões, incluindo contribuições dos Países Baixos, Bélgica, Irlanda, Finlândia e Espanha.
A desigualdade no acesso aos imunizantes mantém o mesmo cenário: lenta vacinação em países mais pobres e terceira e quarta doses de reforço em países que podem comprar as vacinas diretamente com as fabricantes. Nesse contexto, o Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Infantil do Texas anunciou, sem muita repercussão midíatica, ter criado a primeira vacina sem patentes contra a covid-19: a Corbevax. O projeto promete revolucionar o acesso a uma vacina segura e eficaz contra o vírus que iniciou a pandemia em 2020.
Proteína recombinante
Uma das principais reivindicações globais durante a pandemia tem sido a quebra de patentes para fabricação dos imunizantes. Com experiências prévias de estudos de vacinas contra outros tipos de coronavírus, a equipe de cientistas liderada por Peter Hotez e Maria Elena Bottazzo pôde chegar em um tempo relativamente curto à vacina contra a covid-19.
Aprovada pelo governo da Índia para uso emergencial, a Corbevax foi elaborada em conjunto com a farmacêutica indiana Biological E., que realizou os testes de fase 3 da vacina no país, com 3 mil voluntários. Os resultados revelaram uma eficácia de 90% contra o SARS-CoV-2 original e de 80% contra a variante Delta. Ainda são esperados os resultados em relação à nova variante Ômicron.
A expectativa da Índia é produzir 100 milhões de doses por mês a partir de fevereiro.
Ao contrário de outras vacinas contra a covid-19, que necessitam de temperaturas extremamente baixas para serem transportadas, a vacina recém-aprovada na Índia pode ser armazenada entre 2ºC a 8ºC.
Além disso, a Corbevax utiliza a tecnologia da proteína recombinante (resposta imunológica desperta a partir de proteínas do vírus), visando uma vacina de fácil replicação, barata e sem custos sobre sua receita original.
“É uma tecnologia muito simples para que qualquer um possa replicar seu processo. Nós não limitamos a vacina com patentes. As receitas são públicas para que qualquer um possa aprender a fazê-la”, afirmou a cientista Maria Elena Bottazzo ao portal hondurenho Proceso Digital.
No início da pandemia, segundo Bottazzo, a equipe apresentou o projeto da vacina ao governo dos Estados Unidos. O foco de investimento, porém, estava nas vacinas com base no RNA mensageiro, desenvolvidas por companhias privadas como a Pfizer.
Lucros milionários
Projetos como a Corbevax desafiam a lógica capitalista de monopólio ao vislumbrar a saúde como um bem comum. É a contramão do modelo vigente, em que os governos não só financiam a adaptação e pesquisa de laboratórios privados para enfrentar a pandemia como servem aos interesses do mercado.
Médico sanitarista e fundador da Anvisa, Gonzalo Vecina Neto é crítico à gestão global da pandemia, mas enfatiza que a solução não deve ser simplista. “É vergonhoso ver como a Pfizer, a AstraZeneca, a Moderna, multiplicaram absurdamente os seus lucros na pandemia, com vacinas para salvar o mundo”, diz. “Mas o lado romântico de liberar patente e acreditar que todos sairão produzindo não existe. É mais complicado. Tanto que, para produzir a IFA [Ingrediente Farmacêutico Ativo], a Fiocruz passou por adaptações de quase um ano. O Butantã não terminou ainda.”
A questão levantada por Vecina faz eco às campanhas que pedem a liberação de patentes. Advogada especialista em propriedade intelectual na Argentina, Lorena Di Giano ressaltou ao Brasil de Fato que o acesso às receitas das tecnologias não é uma solução que vem sozinha. “Pedir a liberação de patentes é uma mensagem simples, para que as pessoas possam entender, mas é muito mais complexo porque a propriedade intelectual vai muito além das patentes”, explica Di Giano.
“São desenhos industriais, acesso a equipamentos, informação que sustenta os testes sobre a tecnologia desenvolvida. Mas é necessário utilizar uma linguagem simples porque inclusive os próprios governos, por uma questão de captura corporativa, acabam representando os interesses econômicos das empresas.”
Nesse sentido, ela pontua que Brasil e Argentina são exemplos de potencial industrial e científico para fabricar vacinas: “Com vontade política, os laboratórios do setor público desses países têm capacidade para adaptar-se e produzir vacinas”.
Gonzalo Vecina diz que a gestão da pandemia no Brasil é um exemplo de falta de vontade política. “Poderíamos ter vacinado 100% da população no Brasil no primeiro semestre de 2021. Apesar de termos condições técnicas para fabricar e comprar, o governo não quis fazer isso”, avalia o médico sanitarista.
Para Vecina, o fracasso da distribuição de vacinas no mundo se deve à má execução por parte de organismos internacionais e dos países em gestar soluções. “Será que se o [magnata mexicano] Carlos Slim não pusesse dinheiro, a Argentina e o México iriam produzir uma vacina?”, questiona, mencionando a cooperação entre ambos os países para fabricar parte da vacina da AstraZeneca. “Acho que essa pergunta não tem uma resposta boa.”
Nesse sentido, os grandes atores por trás das vacinas têm sido muito mais as fundações filantrópicas fundadas por milionários e as multinacionais do que os organismos internacionais. Além do caso de Carlos Slim, há o exemplo da Fundação Bill e Melinda Gates, que tem distribuído recursos e financiamentos
Foi por influência dessa mesma instituição filantrópica que a vacina desenvolvida pelo Instituto Jenn da Universidade de Oxford deixou para trás os planos originais de fazer um imunizante sem patente e compartilhar sua fórmula para tornar viável a produção em larga escala. Um dos atores do projeto, a Fundação Bill e Melinda Gates insistiu na entrada de uma multinacional, conforme relatou à Bloomberg o próprio Bill Gates. “Fomos à Oxford e dissemos, vocês estão fazendo um trabalho brilhante”, disse o bilionário, que também relatou ter incentivado conversas com empresas: “Vocês realmente precisam se unir, e então demos uma lista de pessoas para conversar”.
Assim, a Oxford assinou um contrato de exclusividade com a AstraZeneca. Apesar de conceder licenças para a fabricação de parte do processo da vacina em outros países, a inclusão da farmacêutica limitou o alcance e a produção dos imunizantes no mundo.
“Essa pandemia está mostrando a desigualdade entre os países que precisamos superar para manter a possibilidade de vida no planeta”, diz Gonzalo Vecina. “Não vamos aprender nada com a pandemia? Falta entendermos que, para o mundo continuar existindo, teremos que tomar decisões sobre o que fazer no mundo. E nós não tomamos essas decisões ainda.” (Fernanda Paixão/BF – Ilustração/pixabay)